20 de novembro de 2008

A VIDA EM DIÁRIO

O meu tropeço na escrita de Marcello Duarte Mathias também foi fruto do acaso. Em 1985 no alfarrabista de sempre, (Cascais) tropecei 'No Devagar Depressa dos Tempos', Diários Vol. I 1962-1969, Bertrand, Lisboa 1980. Surpresa total, pois não encontrava ali ponta de remorso quanto ao nosso passado histórico, mas uma aventura permanente em viver o presente. Mais tarde comprei em estado bastante usado 'A Felicidade em Albert Camus, aproximação à sua obra' Bertrand, Lisboa 1978 e conheci então um Camus diferente, fora das paixões existenciais, alguém que como um comum mortal perde a vida, dormindo no banco de trás de um automóvel. Como costumo dizer, fiquei cliente! Gosto dos livros de Marcello Duarte Mathias. Fotografias da vida a preto e branco, sem disfarces, mas também sem os estigmas de que a razão e a solidariedade e suas causas, só pertencem à margem esquerda. A entrevista seguinte (DN 22-05-07) é bem o retrato de uma vida.

«Tem vindo a cultivar o género do diário, além do ensaio e da crónica, a par da sua actividade enquanto diplomata. Nesse domínio, acaba de publicar Diário de Paris (2001-2003). "Todo aquele que escreve é, à sua maneira, um exilado?"Escrever é tomarmos consciência da nossa singularidade. Do que fomos e somos. Em última análise, sim, escrever é uma forma de exílio. O diário - ou melhor o género que se designa por diário íntimo - é uma procura permanente da nossa individualidade.Nesse sentido, escreve "para coincidir consigo" próprio, entre aquilo que crê ter também um diário: uma dose de narcisismo e outra de masoquismo?Todo o diarista, e são inúmeros os exemplos que o comprovam, passa por fases contraditórias que são características afinal da prática diarística. Momentos de euforia e depressão, por vezes quase em simultâneo. Regra geral, o diário traduz um duplo movimento, a saber: um desejo de autoconhecimento em paralelo com a vontade de se inventar, de ser outro.Um fármaco, uma terapia sui generis, a autobiografia, o diário?A autobiografia é fundamentalmente um balanço, um olhar retrospectivo sobre a totalidade da vida vivida, numa palavra, um ponto final. Ao invés, o diário é a memória a construir-se, um devir permanente. Daí o lado inacabado de todos os diários. Em numerosos casos, o diário - porque se assemelha a uma confissão - tem, de facto, uma função terapêutica. Corresponde, à sua maneira, a um exorcismo.Diagnosticam-lhe, em Paris, um linfoma. Tenta evitar que o cancro contamine as páginas do seu diário, faz dele um antídoto. Não escamoteia a doença, pega-a de frente, até na observação ácida e lúcida dos outros na relação consigo próprio doente...Em situações de extrema solidão interior - caso do cancro -, o diário faz as vezes de um amigo em quem se pode confiar. Oferece a possibilidade de nos evadirmos de um dia-a-dia tantas vezes penoso. Reencontro que é também uma libertação. Está-se mais só e mais livre.Como escreve, "estar doente é ter medo, sentir-se a menos, morrer vivo, é sentir um esvaziamento, perder a generosidade"? A dor não pode ser redentora, constitutiva?Julgo que a doença, uma vez passada, pode eventualmente constituir um enriquecimento como toda e qualquer experiência. Introduz uma certa relativização das coisas, estabelecendo, do mesmo passo, uma hierarquização de valores e prioridades. Mas nisto, como no resto, cada um reage à sua maneira.Viver é saber conciliar o tempo com a morte, simbolizados, como refere, respectivamente pelo relógio e pela caveira? Julgo que sim. Lograr conciliar o tempo e o fim dele, que é a nossa morte, é afinal saber viver. Difícil aprendizagem. Difícil equilíbrio. Há que aceitá-lo sem dramas, mas de olhos abertos.Definir-se-ia como um céptico saudável?Sim, o cepticismo é um estado de espírito saudável. Porque ser céptico é ser-se vigilante, o que nunca fez mal a ninguém, sobretudo nos tempos que correm, em que vivemos rodeados de falsas cintilações e falsos deuses. Em diversos planos. Um exemplo: veja-se a propaganda desavergonhada que serviu de pretexto à invasão do Iraque, que levou tanta gente de boa-fé ao engano! Posto isto, o cepticismo - que é, no fundo, um distanciamento - não deve descambar em desalento ou derrotismo, nem conduzir à inacção. Há todo um equilíbrio que importa salvaguardar. Tenho por hábito citar esta frase de Ruben A., que acho magnífica: "Ser homem é ter um ideal e não ter ilusões." Está tudo dito.Que entende por falsos deuses e falsas cintilações?Tudo aquilo e todos aqueles que brilham sem luz própria.No seu diário, parte da perspectiva individual para a colectiva. É longa a tradição de um Portugal visto e interpretado de fora pelos intelectuais portugueses. Uma imagem amarga, a sua, a de um "país sem convicções, desmemoriado", que vive, tal como salienta, com o futebol?O facto de ter vivido largos anos no estrangeiro talvez me tenha dado um outro olhar para com a realidade do nosso país. Parece-me que temos vindo a perder - embora este fenómeno não seja exclusivo de Portugal - muitas das nossas referências tradicionais, como se de súbito nos tivéssemos tornado amnésicos. É um processo alarmante, mormente para quem, é o meu caso, pertence a uma geração mais velha que dispõe de outra perspectiva. Quanto ao futebol, considero tratar-se de uma patologia nacional, para a qual não vejo nem cura nem remédio.Portugal, "um acrobata em desequilíbrio" numa Europa "em que uns dançam ao som da música que outros tocam"?Quando se fala do processo político da integração europeia, há sempre que ter em conta dois aspectos: as iniciativas que aparentemente são benéficas para a Europa no seu conjunto; a incidência que essa mesmas iniciativas possam ter quando aplicadas ao país A, B, ou C. Nem sempre os dois planos coincidem. Como se sabe, a igualdade entre países no contexto internacional é coisa que não existe. Por isso tanto na Europa, como fora dela, "uns dançam ao som da música que outros tocam". Importa minorar esses efeitos, o que não é fácil.A nova geração portuguesa já não lê Eça e perdeu o sentido da História, como escreve com veemência no seu diário?Oxalá eu me engane, mas a observação da vida portuguesa sugere, como já o disse, que o sentido da nossa história, memória determinante do que somos e ambicionamos ser, também se tresmalhou, sem que nada o tenha substituído.Tresmalhou-se em que sentido?Perdeu o rumo e não sabe de onde vem. Adaptamos, como coisas nossas, com zelos de neófito, toda a espécie de preconceitos, inconformismos, modas culturais. Navegamos ao sabor da corrente. Falta-nos fibra, irredentismos, desassombro. Temos medo de ser diferentes.Escreve, no fundo, para fugir ao tempo, porque se tem "medo de viver e se vive a dobrar". É fazer um inventário da existência?Escreve-se sempre contra o tempo, que é o grande cúmplice e o inimigo de quem escreve diários. Contudo, o facto de tomar notas com carácter de assiduidade leva-nos a conferir maior atenção ao mundo à nossa volta, a melhor assimilar a realidade temporal que nos circunda, vive-se mais ou de outra forma. Se quiser, é o tal " viver a dobrar".É preciso recordar, com Séneca (a partir de Foucault), que as relações consigo próprio como objecto de conhecimento é uma forma de quase impossível salvação?No fundo, melhor ou pior, a salvação radica no próprio acto de escrever. É ele que nos redime.A memória é, de certo modo, uma glória. Nessa medida, como recorda seu pai - presente neste diário - Marcello Mathias, embaixador de Portugal em Paris, entre 1948 e 1958, e ministro dos Negócios Estrangeiros do governo de Salazar, entre 1958 e 1961?O meu pai foi a pessoa que maior influência teve em mim. Teve e, ainda hoje, tem. Foi o espírito mais livre que conheci.Chamaria poliédrico a este seu diário?Seria presunçoso da minha parte definir o meu diário. Direi apenas que a diversidade dos temas me parece ser um dos seus méritos.Que trouxe de alguns dos países onde esteve no exercício de funções diplomáticas?Do Brasil, a descoberta de um Portugal diferente; da Bélgica, uma certa Europa; de Nova Iorque, uma energia contagiosa; da Índia, uma imensidão de tempo; da Argentina, um país de encruzilhada, à espera de si mesmo; de Paris, um mundo de afinidades.A memória é ainda "feita do que não viveu". Escrever é tornar a imaginação acção?Escrever equivale sempre a ficcionar. Porque é transpor, encenar, imaginar, reescrever. Corresponde à emergência de outra realidade, mais próxima de nós, mais pessoal. É conhecido: toda a memória - do que existiu e do que não chegou a existir - é invenção. Ao fim e ao cabo, também isso nos ajuda no acto de viverFonte: Entrevista ao DN-2-05-07.


(Ex)citações:

'Se fosse primeiro-ministro, punha António Costa já na 5 de Outubro. Ficava com que se entreter.' Eduardo Pitta, no blogue Da Literatura.

'Há apenas uma coisa mais irritante do que a bazófia do Governo: os líderes da oposição.' M. Jorge Marmelo, no blogue Teatro Anatómico.